O Grito


Carol Bortolo

Há uma casa no fim da rua que é diferente de todas as outras que já se viu por aí. A arquitetura até se confunde com a de qualquer outra moradia, mas as cores e os detalhes deixam claro que não há nada de muito comum por ali. Cada vez que se bate o olho, parece que um novo segredo espia de volta pela janela. Porém, para descobrir o que há além daquela superfície curiosa, é preciso olhar pra dentro.
Por dentro, o sentimento de intriga troca de lugar com o de terror. A casa é recheada de silêncios, e não estou falando daquelas quietudes boas que acalentam as meditações. É aquele silêncio de uma casa há muito abandonada, cheia de pó, com o assoalho rangendo a cada passo e com toda a mobília esquecida embaixo de lençóis amarelados.
Alguém morou ali um dia. Tem um sofá, ficaram pratos na pia, a cama se deixou arrumada, a penteadeira tem algumas fotos de muitos pontos diferentes do mapa mundi. No chão, com a moldura quebrada, um sorriso jovem espanta por sua beleza e por sua sinceridade. A dona do sorriso talvez seja a dona dessa casa abandonada, talvez não, mas independente de suas conquistas materiais, foi feliz naquela foto.
Ao subir as escadas, mais quadros na parede. Tem tanta vida ali pendurada. Imagens de praias do sul se misturam com tons alaranjados de outono do norte e com muitas muitas muitas ondas do mar, trazendo uma refinada sensação de que por onde quer que a dona dessa casa tenha andado, foi guiada pela protetora dos mares. No topo da escada, novamente o sorriso, de canto, mostrando um lápis e um papel na mão.
O andar superior tem apenas um quarto, uma espécie de ateliê. Ao entrar, o frio na espinha que o acompanha por toda a casa fica do lado de fora da porta. Lá dentro, cores e escritos por toda a parte protegem aquelas quatro paredes de todo o mal.
É impossível consumir toda a vida que há ali guardada. São infinitas histórias não contadas, rabiscos, poesias rascunhadas em pedaços de papel. Cada canto é infestado por palavras, quase como se elas tivessem sido jogadas ao vento mas, como haviam paredes, nunca sairam dali.
Aquelas palavras escondidas naquele quarto todo em preto e branco são as veias que mantem a casa viva, curiosa por fora, aparentemente morta por dentro, e de repente um emaranhado de contos e romances sem fim. Há várias janelas que deixam o ateliê iluminado pela luz da vida, seja ela o Sol ou a Lua, mas uma delas tem uma fotografia colada com durex.
Na foto, o mesmo sorriso, a mesma menina. Ao tocá-la, ela se solta do vidro e cai no chão virada com o sorriso para baixo. Há um escrito ali também, talvez o mais importante deles:

***O grito
Aos quatro cantos, grito agora em liberdade
Que o julgamento e a maldade
Nunca mais aprisionem ninguém***

A foto permanece no chão, com o grito à mostra. Dela nasce um redemoinho que vai tomando conta do ambiente. As palavras se soltam e dançam no meio daquela bagunça. Aos poucos, vão ganhando cor. Fica tudo tão colorido que já não há lembranças daquele quarto preto e branco que um dia existiu. O vento apressa o passo e o redemoinho cresce, já não cabendo em si. De repente, explodem-se as janelas e libertam-se as palavras contidas por uma vida naquele quarto. Soltas, elas voam apressadas. Parecem eufóricas e com sede de vida, mas são só palavras. Ou será que não?
Enquanto elas usam suas asas e se recriam em novas formas, o horizonte mostra uma luz perolada no formato de uma mulher. A luz fica parada e deixa as palavras irem ao seu encontro, em festa. Aos poucos, a luz enfraquece e caminha em direção ao sol até sumir de vista, enquanto suas palavras, agora livres, vão tocar os corações pelo mundo.

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Carol Bortolo

E-mail: acarolbortolo@gmail.com

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