Tardes no Flamengo


Carol Bortolo

Eu tinha um amigo que morava no Flamengo, ali na Senador Vergueiro. Seu nome era João. Às vezes ele me chamava para almoçar na sua casa depois da escola. Eu amava. A mãe dele sempre cozinhava arroz, feijão, mistura e salada. Lá no Acari, de onde eu vinha, arroz e feijão no mesmo dia e no mesmo prato era só no Natal, e olhe lá. A expressão << vender almoço para pagar a janta >> com certeza tinha nascido naquela favela através da boca grande de algum vizinho meu. No morro é assim: falta comida na mesa, mas sobra fofoca na boca das pessoas.
Depois do último dia de aula das nossas vidas, João me convidou também para o último almoço. Era tudo igual, mas tudo parecia diferente. A comida continuava deliciosa, mas o fantasma do << nunca mais >> entre o copo de suco e a cumbuca de salada me mirava sem piedade e aquilo me causava certo mal estar.
Acho que o João também sentiu o ar pesado e deu a ideia de irmos jogar bola na praia. Depois de quinze minutos de chute a gol, João disse:
- Ei, Lucas, vamos dar um tempo. Eu não quero perder o pôr do sol.
- Achei que a gente ia só jogar bola.
- A gente veio jogar bola << e >> ver o pôr do sol, oras – disse João enquanto se sentava e dava palmadinhas na areia, me convidando para sentar-me ao seu lado.
- Já pensou se a gente vira jogador de verdade um dia, João?
- Você acha que a gente tem chance?
- A gente é pobre, é preto e sabe jogar bola. O que mais precisa ter?
- Precisa conhecer pessoas, né Lucas?
- Que tipo de pessoas?
- Pessoas que podem mudar nossa vida. Meu pai sempre diz isso, que eu preciso << conhecer as pessoas certas >>.
- Bom, seu pai viaja tanto que ele deve saber o que diz.
- Não sei se a vida dele é esse morango não, viu Lucas.
- Como que não, mermão? Ele vive pelo mundo afora com aquele navio.
- << Sobrevive >> mundo afora, Lucas.
- Deve ser incrível viver no mundo – respondi jogando meu corpo para trás.
Joao me olhou e fez o mesmo. Se ajeitou de modo que ficássemos de costas um para o outro e nossos ombros se tornassem as almofadas onde podíamos apoiar nossa nuca. Nossa sintonia nos transformava em um e aquelas tardes no Flamengo eternizavam tudo o que gritava dentro de nós, porém jamais havia sido verbalizado. A verdade é que a gente já sabia onde a paz morava, e saber que aquilo podia acabar em breve nos apavorava.
- Preciso ajudar minha mãe a pôr comida na mesa – desabafei.
- Eu sei. Ela aguentou esses três empregos por tantos anos para que você terminasse a escola, né?
- Minha mãe é minha musa, mas chegou a hora de retribuir.
- E você já tem ideia do que vai fazer?
- Sim, vou ser imigrante.
João virou o rosto de repente e, por um milésimo de segundo, nos olhamos tão profundamente que pudemos ver nossas almas. Já não era mais a areia que nos apoiava, mas sim as nuvens. Foi ele quem nos devolveu à realidade:
- De onde você tirou essa ideia?
- De dentro de mim.
- Como assim?
- Olha para o céu, João. Olha para as nuvens.
- Aquela parece um unicórnio.
- E aquela outra um carro.
- Onde quer chegar?
- O mundo é muito grande para que a gente aceite essa vida miserável de Rio de Janeiro.
- Eu gosto daqui.
- Eu também, mas eu quero ver o mundo.
- Você nem fala português direito.
- E daí? Quem tem boca vai à Roma.
- Onde fica Roma?
- Acho que na Itália.
- É para lá que você quer ir?
- Dizem que imigrante mora no mundo, então não precisa ser lá.
- Hum.
- Hum o que?
- Deve ser legal conhecer o mundo, mas imigrante não é profissão.
- É melhor que isso: é decisão. Chegou a hora de decidirmos nossa vida, cara.
- Mas e a sua mãe?
- Vou mandar dinheiro para ela todo mês. Eu conheço uma << pessoa certa >>. Tenho um antigo vizinho que agora mora em Londres e paga todas as contas da família aqui sendo motoboy lá. Ele já me chamou várias vezes.
- Hum.
- Hum o que?
- Não sei, parece perigoso.
- Perigoso são as balas perdidas quando subo o Acari.
- Aqui no Flamengo também tem.
- Eu sei. A gente vai morrer de qualquer jeito, João. Não quero que seja por uma bala perdida.
- Nem eu.
- Então vem comigo.
- Para onde?
- Pro mundo.
- Como assim?
Eu me levantei e peguei na mão do meu amigo.
- Lá fora a gente pode ser quem a gente quiser, João. A gente pode ser livre. Não vão mais nos olhar do mesmo jeito que fazem na escola.
- Eu não sei se o mundo é tão gentil assim.
- Gentil nunca é, mas a gente precisa se dar uma chance. Vem comigo, João.
- Pro mundo?
- Para construir o << nosso >> mundo, longe daqui.
- E se não der certo?
- E se der?
- E se perdermos tudo?
- A gente já não tem nada, João, só essa vida aqui. Vamos!
João suspirou fundo, se levantou, andou devagar até o mar e deixou as ondas beijarem seus pés. Olhou para o céu e sua cabeça acompanhou um avião que tinha acabado de decolar do Santos Dumont e passeava por entre as nuvens. O avião foi diminuindo de tamanho até sumir no horizonte junto com o sol que se despedia de mais um dia. João começou a andar na minha direção, um sorriso diferente iluminando seu rosto, daqueles de canto cheios de segundas intenções. Sob a luz das primeiras estrelas, João me deu a mão e disse:
- Por que não?

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Carol Bortolo

E-mail: acarolbortolo@gmail.com

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