Não é o mesmo barco


Carol Bortolo

- Ciao, bella!
- Gennaro, já chegou no aeroporto?
- Sí, sí, bella, estou esperando você.
- Estou há cinco minutos de carro daí. Me espera na área externa do desembarque?
- Claro, bella, vou só comprar um desses famosos pastéis de nata e te espero lá.
- Okay, amico, sto arrivando, ciao.

E foi assim que uma ligação de menos de um minuto mudou meu domingo ensolarado em Porto.
Gennaro era um grande amigo napolitano que eu tinha tido a sorte de conhecer durante minha temporada de imigrante na Irlanda. Entre chuvas, pints de Guinness e ventanias, sua alegria contagiou o restaurante onde estávamos subaproveitados por um salário-mínimo, e conquistou meu coração pelo sorriso que ele me dava sempre que me via chegar.
Afinidades não tem distância ou tempo que destrua, e foram elas que o fizeram aguentar os atrasos da Ryanair para vir conhecer Portogallo e me visitar na nova casa. Buscá-lo no aeroporto era peça fundamental desse quebra-cabeça, porque só quem viaja sozinho sabe o quanto o coração bate diferente quando tem alguém te esperando chegar.
Quando entrei na área do desembarque, logo o vi. Ele nunca tirava aquela jaqueta vinho e seus 1,85 m de altura não eram exatamente um sinônimo de discrição. Como a buzina do meu Corsa não funcionava, usei nosso código de guerra para chamar-lhe a atenção. Aproximei o carro o suficiente para que ele ouvisse a melodia de Andrea Boccelli que extravasava as janelas abertas e inundava todo o espaço, atraindo olhares curiosos.

Penso che un sogno così non ritorni mai più

Gennaro me viu.

Mi dipingevo le mani e la faccia di blu

Gennaro apagou o cigarro e começou a andar na direção da música.

Poi d'improvviso venivo dal vento rapito

Gennaro abriu a porta do Corsa e me sorriu.

E incominciavo a volare nel cielo infinito

Gennaro se sentou ao meu lado e, antes mesmo de me abraçar, tomou fôlego comigo e, juntos....

Volare, oh-oh
Cantare, oh-oh-oh-oh
Nel blu dipinto di blu
Felice di stare lassù

- Amico, que prazer te receber em Portugal – disse finalmente, abraçando-o.
- Io te voglio tanto benne, Carolina. Que saudade!
Eu amava aquele nosso jeito de conversar, misturando italiano, português e inglês. Amava o jeito como ele se esforçava para dizer a palavra ‘saudade’ com ênfase no ‘dgi’. Mas amava, principalmente, a chance de apresentar-lhe a querida cidade do Porto sob o meu olhar.
- E aí, o que você quer fazer? - perguntei.
- Você é a guia, Carolina. Você quem manda.
Olhei pra ele de canto, sorrindo. Tinha apenas quarenta e oito horas para mostrá-lo cada detalhe que fosse especial para mim, mas ao sentí-lo finalmente ali, tudo que eu queria era desacelerar o tempo e aproveitar sua companhia. Sabia aonde tínhamos que ir.
- Bom, já que eu que decido, nossa primeira parada vai ser para almoçar e tomar um café.
- Ótima ideia, porque a Ryanair, você sabe, até pra servir um copo de água pra tomar remédio eles fazem cara feia.
- Nem me lembre. Mas você sabe que sinto saudades? Já tenho dez meses em Portugal e ainda não posso viajar. Sinto saudades do mundo.
- Por que não pode?
- Ainda não tenho residência.
- Achei que você já estivesse no Mestrado.
- E estou.
- Então como está estudando sem ter residência?
- O sistema português de imigração não é esse morango, Gennaro.
- Se fosse um morango, seria bem mais gostoso.
Gennaro e seu senso de humor peculiar.
- Não acredito que você nunca tinha vindo à Portugal antes. Você viajou tanto e não passou por aqui por qual motivo? - perguntei.
- Ainda não era a hora, eu acho. Mas agora é.
Gennaro suspirou e me senti grata por ele ter esperado a hora certa para conhecer o país pequenino que agora me acolhia com sua cultura e singularidade enquanto eu estudava. Apesar das burocracias, eu tinha mais pontos positivos para somar à minha experiência do que o contrário, e queria que o Gennaro sentisse isso enquanto eu o apresentava à cidade nortista que estava cada dia mais popular em todos os guias de turismo do mundo.
A conversa jogada fora comeu o tempo e logo me vi estacionando o carro em frente ao Negra Café da Baixa. A vaga era uma sorte, e a comida do lugar, uma benção. Que dia!
- Dois lugares, por favor.
- Por aqui, senhora.
O Negra Café tinha uma decoração clássica, porém divertida. Os coloridos de seus sofás combinavam com as histórias guardadas daqueles livros antigos que agora eram mera decoração e que contrastavam com os retratos em preto e branco da área dos banheiros e com os lustres amarelos em formato de cabeças de Piu-Piu.
- Vou querer um toast com ovos mexidos e um café abatanado, por favor - pedi.
- E para mim um toast de salmão, um café expresso e um pastel de nata.
A soma de nossas experiência sempre nos denuncia nos detalhes das nossas preferências, afinal. Enquanto eu levava comigo o café fraco dos meus muitos anos vivendo nos Estados Unidos, Gennaro desbravava o mundo desde que pudesse ter consigo seu café expresso.
- Amica, você parece tão feliz aqui. Está diferente daquela menina de cara sempre fechada que trabalhava comigo em Dublin.
- Portugal me dá paz.
- Consigo sentir isso em você. Seu semblante mudou. Parece que não está mais em guerra.
- Aqui é fácil de estar, Gennaro. A atmosfera é mais calma do que a loucura da Irlanda.
- Nem me fale. E aqui há sol.
- SIM! Sol e verão de verdade, não só nas previsões do Google.
- Ouvi dizer que as praias são lindas - ele sugeriu.
- E como. Vou te levar para assistir ao pôr do sol em Matosinhos. Deus caprichou nessa cidade, amico, e olha que eu não falo muito isso.
- Eu sei. Nunca tinha ouvido nada parecido sair da sua boca antes.
- Não me apaixono assim tão fácil.
- Se apaixonou por Porto? - Gennaro perguntou.
- Não sei dizer se é paixão, amor ou só um belo de um descanso depois de tantos anos tentando me encontrar.
- Se encontrou aqui?
- Portugal me lembra a minha casa.
- Claro, as culturas se conectam.
- Não é só isso.
A garçonete trouxe nossos pratos e, ao sentir o cheiro do café, Gennaro começou seu ritual. Italianos não bebem café, italianos veneram café. E, aonde quer que vão, um novo café é como um novo diamante bruto que eles precisam investigar, polir, tocar, sentir, e então dar o seu veredito:
- Bellissimo caffè!
Eu amava vê-lo feliz daquele jeito.
- Mas, Carolina, o que mais te faz sentir-se em casa então?
- Tudo. Meus quatro bisavós foram de Portugal para o Brasil e criaram minha mãe e minhas tias. Quando vou à mercearia e escolho as frutas da semana, parece que minha mãe está ali comigo, dando palpite em qual abacaxi está mais maduro e doce.
- Sente falta de casa?
- Não, mas depois que cheguei aqui, ligo mais vezes para conversar com eles. Ver minha mãe feliz do outro lado do telefone por sentir que estou sendo acolhida na terra de seus avós me dá uma sensação de pertencimento que nunca tinha sentido antes.
- Como se uma parte sua fosse portuguesa?
- Uma parte minha << é >> portuguesa, amico. Assim como uma parte é italiana e romântica como Verona.
- E quando vamos à Itália conhecer a outra parte da sua origem?
- Quando você quiser me apresentar, oras bolas.
- Será um prazer. Mas nao ficaremos somente em Verona, tudo bem? Não conhecerás a verdadeira Itália se não tirarmos um dia para comer o cannoli da Nonna lá em Nápole.
Minha cabeça rapidamente entrou em um avião e viajou para a Terra da Bota. Enquanto dava um gole no meu abatanado, conseguia visualizar sua avó recheando os cannolis com creme de pistache, fresquinhos, e os colocando para compor a mesa do chá da tarde.
- Planeta Terra chamando Carolina.
- Oh, me desculpa. Eu estava viajando.
- Como sempre, amica - ele me olhou rindo. Não era a primeira vez que me via sumindo em minha própria mente.
- Gennaro, se eu não encontrar sonhos dentro de mim, que chance eu tenho de vencer? - respondi, frustada.
- O que quer dizer?
- Você sabe. Mesmo tendo mudado pra Portugal, continua difícil uma oportunidade para participar da dança das cadeiras do capitalismo europeu.
- Diz isso porque ainda espera sua residência? - ele perguntou, curioso.
- Digo isso porque imigrar é desjurar os juramentos jurados. Jurei que nunca mais assinaria um contrato de trabalho. Jurei que nunca mais teria um vale refeição. Jurei que nunca mais veria meu nome em um crachá. E olha eu aqui, amico, buscando exatamente isso.
- Carolina, eu não consigo imaginar como é viver isso. Você viu como eu virei tradutor do Call of Duty mundial, né? Fui lá tomar um café com eles e sai contratado, com um salário bom. Tenho vinte e dois anos e uma estabilidade que, quando falo com você, vejo que é um privilégio.
- Privilégio é a palavra-chave dessa equação.
- Não é o mesmo barco, né? - ele disse, se aproximando e me abraçando.
- Não, não é. E temo que nunca será - respondi, aceitando o abraço e deixando uma lágrima escorrer pelo rosto.
Gennaro me olhou, secou meu rosto e ficou ali, em silêncio.
- Dizem que as resistências mudam o mundo. Ainda estou aqui, resistindo - desabafei.
Eu sabia que ele era daquelas amizades que me via desnuda nas dores do tentar. E sabia que o relógio corria contra nós, entao eu não tinha mais tempo para ficar ali, sentada naquela dor. Era preciso ver o mundo por outra perspectiva.
- Vamos, Gennaro, ainda quero te apresentar ao pôr do sol.
Subimos as escadas da cafeteria correndo, pagamos e saimos para as ruas de Porto como se as conversas densas nunca tivessem acontecido. A magia das amizades é o seu poder de reconstrução.
- Posso dirigir? - Gennaro perguntou.
Hesitei. Ele era a visita ali, mas… por que não?
Gennaro entrou no carro, arrumou o banco do motorista, os retrovisores e conectou seu Bluetooth. Logo que The Climb, da Miley Cyrus invadiu os alto-falantes, ele girou a chave e deu a partida.

There's always gonna be another mountain
I'm always gonna wanna make it move
Always gonna be an uphill battle
Sometimes, I'm gonna have to lose
Ain't about how fast I get there
Ain't about what's waiting on the other side
It's the climb

- No que pensa, Carolina?
- Na montanha da Miley e no quanto eu já subi dela.
- Aprendeu a olhar a vista enquanto sobe?
- Não sei.
- Pois eu soube quando te vi no aeroporto.
- O que viu de tão especial?
- Seu olhar. Você finalmente aprendeu a aproveitar a caminhada.
- Você acha?
- Uhum. Você tem razão: não é o mesmo barco e não sabemos se um dia será. Mas eu vejo sua força e sei que você irá remar o quanto precisar até finalmente chegar aonde deseja. É por isso, inclusive, que estou dirigindo.
- Não entendi.
- Sua caminhada é mais longa e mais dura que a minha. Eu reconheço isso e sinto muito. Não posso mudar as injustiças do mundo, Carolina, mas posso garantir que, enquanto estiver ao meu lado, eu vou intercalar o remo com você.

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Carol Bortolo

E-mail: acarolbortolo@gmail.com

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