Maria Morreu


Carol Bortolo

Já era noite quando Maria morreu. A enfermeira lhe fechou os olhos, fez duas ligações e respirou aliviada por não precisar mais cuidar da velhinha teimosa. Enfim, um pouco de paz naquele asilo.

Horas depois, no maior cemitério da cidade, porém em uma sala tão pequena que mal cabia o caixão, o corpo de Maria aguardava o último adeus. Os amigos, vizinhos e familiares certamente apareceriam, mas por uma hora o corpo ficou ali, congelado no vazio daquela sala e daquela alma que foi incapaz de trocar afeto por toda a vida.

Maria deixou dois filhos, duas noras, quatro netos. Deixou também fofoca pela feira do bairro, chororô na padaria do Seu Manuel onde dizia ser uma velhinha abandonada para não pagar o pão, lamentações para o carteiro que tremia toda vez que tinha que tocar a campainha, discórdia com o pessoal da Testemunha de Jeová que aos domingos de manhã tentavam lhe levar alguma esperança, medo nas criancinhas da rua que sem querer chutavam a bola no seu quintal.

Maria era uma combinação imperfeita dos piores sentimentos do mundo e viveu uma vida com esse fardo nas costas. Sua origem vinha de um casal de imigrantes que foram ao Brasil no começo do século XX com a promessa da Terra da Oportunidade e acabaram massacrados nas fazendas de café, trabalhando a troco de migalhas. Maria nasceu ali, na pobreza e na escravidão calada dos europeus que fugiam da guerra e, apesar das péssimas condições, eram gratos por terem cruzado o oceano e ainda estarem vivos.

Maria era filha da dor, da fome, da escassez, do alcoolismo, do abuso, do assédio estrutural. Era filha do sistema que matou suas esperanças antes mesmo de lhe nascer a capacidade de falar. Era filha do trabalho infantil e de uma paixão torta que levou aqueles cabelos louros e lindos olhos azuis a dizer "Sim" assim que a maioridade cortejou seu corpo.

Maria era fruto de um casamento violento, mas ela nunca percebera o que lhe aconteceu. O pai a abandonara, a mãe queria que ela logo desse jeito na vida e o marido fedia à pinga desde o cafezal. Para Maria, cujas raízes de sofrimento tocavam as profundezas do ser, aquilo era o normal, era o que a vida lhe podia oferecer, era o que era e ponto final.

Aos que nascem nos escombros das baixarias, como Maria, nunca lhes é permitido pensar. Foi assim que, depois de sete décadas em silêncio, Maria se viu viúva, amargurada e mergulhada em um silêncio que todos pensavam ser de luto, mas que a ela tinha um sabor adocicado, como se as exigências do existir finalmente houvessem lhe dado alguma trégua.

A trégua, entretanto, durou poucos dias. A casa empoeirada onde vivia sua mente logo começou a ter aranhas subindo pelas paredes, ratos pelo chão e cobras pelos móveis. Maria foi consumida pelas suas entranhas como se levasse um soco no estômago, um soco que a jogou numa prisão sem chave onde viveria até seu último dia.

Viúva e presa em si, Maria morreu por dentro antes de deixar ir o corpo. Não criou laços porque sua vida era um verdadeiro nó cego. Além disso, que amor Maria daria se ela não sabia o que era amar? Que cuidado Maria teria com os outros sendo que a tinham jogado nesse mundo para uma vida mundana e afogada em desespero? Maria terminou seus dias murmurando a soma das violências que testemunhou durante toda sua existência. Dona Maria, humana e imperfeita como todos nós, levou consigo as piores lembranças de uma vida quase vivida em vão.

Uma hora depois do silêncio daquela pequena sala de cemitério, um filho chegou. A olhou por um minuto, deu um suspiro de alívio e pensou em como dividiria a herança da casa. Talvez trocasse de carro e pegasse um zero da concessionária, condizente às suas tantas vaidades. Não chorou, não havia nada a lamentar.

Logo seu irmão apareceu à porta com a esposa e os filhos, o cumprimentou rapidamente e deixou umas três ou quatro lágrimas lhe molharem o rosto. Tentou falar da mãe com o irmão, mas não havia nada a ser dito entre eles há muito tempo e seus filhos já começavam a brincar de esconde-esconde pelas tumbas, talvez sem entender a morte, talvez também aliviados por não precisarem mais visitar a vó no Natal.

Na brevidade daquele encontro final forçado, os irmãos se despediram da mãe, chacoalharam as mãos e foram cuidar das bucrocracias para enterrar o corpo. Sabiam que ninguém mais viria desperdir-se da Dona Maria Amargurada.

Isso agora era passado. Maria, fora dos julgamentos bons ou ruins, era agora apenas um punhado de certidões que lhe garantiriam vida eterna nos cartórios. Os filhos não precisavam mais vê-la, suportá-la, cuidá-la, nem falar seu nome.

Maria morreu, finalmente. Levou consigo suas muitas cicatrizes, seus tormentos, uma memória ou outra de momentos felizes ao longo de seu quase um século de vida. Deixou uma pequena casa e uma sombra de olhos azuis da cor do mar na memória dos dois filhos. Olhos de quem viu uma vida tão dura passar diante de si, que nunca se permitiu chorar. E agora, ali jazida, parecia tranquila por ter conseguido terminar sua missão, seja ela qual fosse.

Maria, que nunca viu a paz em vida, a reencontrou quando seu corpo finalmente sumiu do mundo, enterrado à sete palmos do chão.

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Carol Bortolo

E-mail: acarolbortolo@gmail.com

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